trecho do capítulo 4 - A voz do silêncio

Phillip verificou o relógio de bolso novamente. Estava nervoso, com pressa. Depois da empresa precisava passar em outro lugar, sozinho. Maya não precisava ir com ele, nem deveria. Monikha não ia gostar.

Pouca gente ia gostar, na verdade. Provavelmente só ele, a moça e a dona do hotel onde se encontravam esporadicamente. Não importava, para Phillip, pouca coisa importava.

Viu quando o homem fechou a loja e apagou as luzes. Ele não saiu, foi para os fundos e desapareceu na escuridão. O Noivo, entretanto, continuou parado. Apesar do nervosismo e da pressa, alguma coisa o incomodava, avisava que algo muito estranha estava para acontecer.

Acostumado a uma vida cheia de regalias e vitórias, o rapaz ouviu sua intuição. Se deveria ficar ali, arriscaria. Desacostumado a perder, queria saber o que aconteceria. Na maioria das vezes se dava muito bem. Era quase um dom que ele tinha para atrair dinheiro, atrair riqueza.

Deu um tapinha no teto do carro. Sorrindo. Seu dom o atraíra para Maya, a maior de todas as riquezas. Gostava dela, um pouco. Mas o que realmente gostava nela era a sensação de poder, de ser alguém, de conseguir as coisas porque a família era influente e rica. Incrivelmente rica.

Parou pra pensar. De todas as riquezas, a única que importava era o poder. O resto podia ser comprado, mas o poder devia ser conquistado através de luta. Fosse ela verbal ou intelectual. Phillip não era um homem físico, um soldado. Era um pensador macabro que ia pelas sendas da perfídia.

Repentinamente a cidade despertara. Farhan era assim mesmo; numa hora estava vazia, quieta, aguardando. No outro explodia em ação. Ao argutos olhos de Phillip atentaram para um detalhe que, até aquele momento, passara despercebido.

Dois homens atravessavam a rua conversando animadamente. Não eram tão diferentes assim das outras pessoas. Não na capital, onde o povo era excêntrico e se vestia de acordo com a moda.

Aqueles dois lhe roubaram minutos preciosos, sessenta segundos que o fariam se atrasar para uma reunião no fim da tarde; segundos que o fariam quase bater o carro; segundos que o atrasariam para seu encontro, perdendo a chance de esquentar o corpo junto a Monikah.

Mais para frente, aqueles sessenta segundos olhando para os dois salvariam sua vida.
O mais baixo deles era um rapaz de cabelos quase raspados e olhos de uma cor estranha, avermelhada. Um longo manto preto cobria o lado esquerdo de seu corpo. Ele comia uma torta de frango.

Só que foi o mais alto quem roubou um pedaço da vida de Phillip. Seu rosto era quadrado e firme, os olhos azuis eram tão escuros que pareciam negros e ele vestia a estranha armadura cheia de ponteiros e medidores da Guarda Real. Um Kiy, um Marcado, alguém cujo destino estava invariavelmente ligado à família Ahsverus e à sua proteção incondicional.

Phillip perscrutou o rapaz como se ele fosse um monstro prestes a atacá-lo. Seus olhos pairaram nas mãos do soldado: próteses douradas feitas para substituir os membros originais. Soldados mutilados como aquele eram comuns, principalmente após uma batalha. Só que alguma coisa incomodou o noivo de Maya. Não era o jeito sério com que o outro tratava as brincadeiras do amigo; nem o porte ereto, firme; muito menos aqueles lindos olhos escuros. Era uma coisa que as palavras não conseguiam explicar direito. Uma coisa estrelada, mágica, incrível. Brilhavam com vida, apesar do destino sanguinolento.

Eles passaram ao lado do carro e Phillip encontrou as órbitas azuis mais uma vez. Fitaram-se. O Guardião e o Noivo. O azul eterno contra o castanho pueril. Um infinito decimal correu entre ambos até se desfazer numa miríade ausente de significados; houve um segundo entre os milésimos, um sussurro entre berros; os olhos azuis e castanhos filtraram o espaço e a diferença social entre seus donos.

Depois, apagaram-se numa dança extinta. Por um único momento, o divino fez-se homem e a divindade virou menino.

Eram iguais.

Um comentário:

  1. Hmm, interessante a sequência, no entanto as frases estão curtas demais e causam uma certa sensação desagradável.

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